Vicente Jorge Silva
Carta a um candidato a deputado
Começo por confessar que hesitei longamente sobre quem deveria escolher como destinatário da última carta desta série estival e pré-eleitoral, até porque a actualidade política vem sendo dominada por peripécias miudinhas envolvendo algumas reais ou supostas candidaturas a deputados e concluí que nenhuma delas justificava, isoladamente, uma especial deferência epistolar. Optei, assim, por designar um interlocutor anónimo, que pode ser todo o mundo e ninguém, de preferência um(a) candidato(a) estreante na corrida às cadeiras de São Bento.
O recente conjunto de episódios que referi, em particular a anedótica polémica à volta de Joana Amaral Dias, são sintomáticos da silly season que atravessamos, mas ameaça não ficar por aqui e prolongar-se até às próximas legislativas. Eis, caro candidato, um primeiro ponto que deveria preocupá-lo, se porventura encara com algum empenho cívico a actividade parlamentar. De facto, quando a constituição das listas eleitorais estimula as vaidades mais tolas ou os calculismos mais grosseiros, a disputa política não se distingue da bisbilhotice das revistas cor-de-rosa, agora com circulação redobrada nas estâncias turísticas e, por isso, seguida de perto por alguns jornais de referência. Afinal, quem mente? Joana Amaral Dias ou quem alegadamente a convidou para número dois da lista de Coimbra do PS e um eventual cargo institucional ou governativo?
Com efeito, como escapar à grande polémica nacional da actualidade, sobretudo se isso ajudar a vender mais uns jornais? Ora, no momento em que escrevo (terça-feira), de um local de veraneio também contaminado pela silly season, o mais provável é estarem todos a mentir, pelo menos um pouco.
Não é crível que Joana inventasse de fio a pavio um convite inexistente, mas já é verosímil que tivesse exagerado um tanto no estatuto que lhe seria atribuído, para depois recuperar a virgindade política perdida junto do Bloco de Esquerda (quando preferiu Soares a Louçã nas últimas presidenciais).
Aliás, agora que o PS faz gala de uma viragem à esquerda e promete erguer bem alto a bandeira das questões sociais, Joana formaria um par sugestivo com Miguel Vale de Almeida, outro conhecido ‘bloquista’ ressentido com o seu antigo partido e que, subitamente, se deixou convencer pela metamorfose ‘fracturante’ de José Sócrates. Como diria o outro, nunca há fumo sem fogo – e o fogo de Joana será, pelo menos, fortemente insinuante.
O problema é que, entretanto, apanhada no meio das escaramuças verbais entre Sócrates e Louçã, Joana saiu rapidamente de cena e ficou incontactável noutras paragens da silly season, algures em Espanha. Às vezes, os ‘bloquistas’, tirando o seu pedigree modernista, remetem-se à velha regra do silêncio que caracteriza o PCP – de onde provêm, aliás, alguns dos seus militantes mais notórios. É esse precisamente o caso de Daniel Oliveira, ao recusar-se a esclarecer se fora excluído das listas eleitorais do Bloco: «Não confirmo, não desminto e não comento» – disse. Mais claro não poderia ser, sobretudo da parte de um jornalista.
Mas os mistérios das listas são múltiplos e, exceptuando talvez o PCP – onde deixou de haver lugar para surpresas –, nenhum partido escapa aos psicodramas que envolvem o estatuto atribuído a algumas personalidades. Espero sinceramente que não seja esse o seu caso, caro candidato, e se sinta confortável e bem-_-amado onde o colocaram.
Segundo consta, foi preciso quase um levantamento da chamada ‘ala esquerda’ do PS – com Manuel Alegre e tudo – para assegurar que Alberto Martins, líder parlamentar cessante, ocupasse o primeiro lugar na nova lista socialista do Porto. É que o simbolismo do lugar numa lista pode ser infinitamente mais importante do que o debate de ideias e opções políticas, em relação às quais Martins se limitou, no Parlamento, a reverenciar incondicionalmente José Sócrates.
O chefe revelou-se mal-agradecido a quem se lhe mostrou de uma suavidade e fidelidade exemplares. Mas não costuma ser quase sempre assim? Aprenda, caro candidato, aprenda.
Já o jovem e espigado Passos Coelho, incapaz de refrear a sua voracidade pelo poder laranja, não corria o risco do menosprezo mas de ser exemplarmente eliminado das listas por alguns mais ferreiristas do que Ferreira Leite (providencialmente engripada, entretanto, para evitar o beijo fatal de Jardim no Chão da Lagoa).
A mais elementar inteligência política recomendaria que se não fizesse de Passos um ‘mártir’ do integrismo ferreirista, mas até Alexandre Relvas, fidelíssimo conselheiro cavaquista, apostou na estupidez vingativa da punição. É assim, caro candidato, que as coisas costumam funcionar.
Dito isto, deixo-lhe um último motivo de reflexão. Apesar de viver e ter família em Paris, a actriz Inês de Medeiros considerou «irrecusável» o convite para integrar uma lista socialista às próximas legislativas (a notícia do Público, onde recolhi a informação, era omissa sobre o círculo eleitoral).
Embora se soubesse que ela patrocinara a candidatura do PS às últimas eleições europeias, esta sua devoção inesperada a um mandato parlamentar nacional – e também, é claro, ao partido liderado por Sócrates – revela-se deveras surpreendente.
Inês confessa que ainda não sabe como vai governar a sua vida num país de onde se afastou há tempos e cuja actividade política acompanha, naturalmente, muito à distância. Por isso, o tom quase missionário com que proclamou o convite «irrecusável» suscita uma acentuada estranheza. «Irrecusável» porquê?
Para quem tem valores e convicções, o irrecusável só faz sentido em função daquilo que também formos capazes de recusar. Como, por exemplo, os vedetismos decorativos e inconsequentes, ou o carreirismo serviçal, sem autonomia e independência de espírito, que reduz a grande maioria dos deputados a uma massa amorfa. Espero, caro candidato, que esta reflexão lhe seja útil.
(Sol)
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