UM VENTO QUE NÃO PASSA
Poetas convencionais falam da morte, do sexo, do amor ou de Deus. Manuel Alegre prefere temas mais prosaicos. O homem que já nos brindou com 852 elegias à revolução de Abril (incluindo "Abril com 'r'": "r até de porra r vezes dois") e uma ao futebolista Figo ("e em cada rua é um menino/de camisola número sete") alinhavou agora uns versos sobre contentores. Leram bem: contentores. Pelos vistos, o fascinante assunto não se esgotara na cantiga alusiva de uma banda pop (os Xutos & Pontapés). Não, senhor. Portugal carecia de nova abordagem lírica a essas caixas metálicas que enfeitam, ou mancham, as zonas portuárias.
Alegre acha que mancham, e por isso o Fado dos Contentores, publicado no seu site pessoal (www.manuelalegre.com), bate com vigor nos ditos que se empilham junto ao Tejo e impedem ao bardo o usufruto da paisagem: "Por mais que busques defronte/Nem ilhas praias ou flores/Não há mar nem horizonte/ /Só contentores contentores." Ilhas? É evidente que se trata de uma liberdade criativa, já que depois de Alcântara está Cacilhas, cuja superioridade estética face aos contentores será talvez polémica.
Polémica também é a qualidade do texto, como aliás é típico de qualquer poema que rime "contentores" com "flores", "bojadores", "navegadores", "cores", "dores" e, no singular, "vapor". Sem me querer alongar no comentário, digamos que há alguma urgência em que o PS sossegue a dissidência eternamente adiada de Alegre. Caso contrário, corremos o risco de levar em breve com a Trova da Banca (palpite: "Só um cego é que não vê/a perfídia que se esconde/por detrás da CGD"), a Valsa das Taxas Moderadoras ("Tiraram-te pedra do rim/e cinco euros por dia/ /a pedra saiu assim/o conto de reis doía/fora os dois da cirurgia") e, Deus nos livre, a Balada do Augusto ("Dizias-te resistente/ao domínio da canalha/Hoje a canalha é diferente/E ao lado dessa gente/Ergues malho, dizes malha.")
Se é sabido que custa calar o poeta, é importante que o eng. Sócrates, sempre desejoso de silenciar meio mundo, ao menos tente. É que Alegre é de facto uma voz incómoda - para o eng. Sócrates e, mesmo quando tem certa razão, para todos nós.
Alberto Gonçalves
Sociólogo albertog@netcabo.pt
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